
quinta-feira, maio 31, 2007
A Flor e a Náusea
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade
quarta-feira, maio 30, 2007
terça-feira, maio 29, 2007
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida ...
Sou isso, enfim ...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
Alvaro de Campos
segunda-feira, maio 28, 2007
Há outro caminho? Eco: O caminho é só um.
Tenho de reconstruir o trilho. Eco: Está perdido e desapareceu.
Para trás, tenho que caminhar para trás! Eco: Nenhum vai lá ter,
nenhum.
Então farei daqui o meu lugar. Eco: (A estrada continua),
Permanecerei imóvel e fixarei o meu rosto, Eco: (A estrada avança)
Ficarei aqui, ficarei para sempre. Eco: Nenhum se fica por aqui,
nenhum.
Não consigo encontrar o caminho. Eco: O caminho prossegue.
Oh, os lugares por que passei! Eco: Essa viagem acabou.
E o que virá por fim? Eco: A estrada prossegue.
Edwin Muir, in "Rosa do Mundo-2001 Poemas para o Futuro",
Trad. de Cecília Rego Pinheiro
domingo, maio 27, 2007
Pois que nada que dure, ou que, durando
Valha, neste confuso mundo obramos,
E o mesmo útil para nós perdemos
Conosco, cedo, cedo.
O prazer do momento anteponhamos
À absurda cura do futuro, cuja
Certeza única é o mal presente
Com que o seu bem compramos.
Amanhã não existe. Meu somente
É o momento, eu só quem existe
Neste instante, que pode o derradeiro
Ser de quem finjo ser?
Ricardo Reis
sábado, maio 26, 2007
Horas Aladas
Que esvoaça desde longe o seu caminho lento sobre
A copa adejante da minha alma - a canção dele
É mais trilada ainda entre folhas fundamente agitadas;
Mas na hora do nosso encontro, uma palavra clara
É a única nota que canta na própria fala do Amor;
E tu sabes, amor, que o doce tom sofre ofensa, -
Com a luta dos nossos beijos que mal se ouvem.
E como será essa hora quando, por fim, por causa dela
Nenhuma asa voe até mim, nem canção possa fluir?
Quando, errando pela minha vida desfolhada, veja
As penas ensanguentadas espalhadas no pântano,
E pense como, longe de mim, se com olhos iguais
Olhará ela por entre o ramo sem sons os céus sem asas?
Dante Gabriel Rossetti, in "Os Pré-Rafaelitas - Antologia Poética",Assírio & Alvim - Trad.de Helena Barbas
sexta-feira, maio 25, 2007
quinta-feira, maio 24, 2007
A carta da Paixão
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.
Herberto Helder, in "Photomaton & Vox", Assirio & Alvim,1979
quarta-feira, maio 23, 2007
Sistema Solar
num ruído natural. Cada silêncio,
no silente espaço que rodeia, por vezes,
cada coisa. À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois, no sono,
abrem-se como qualquer flor. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois no sono
adensam-se como qualquer árvore. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
Cada silêncio corporiza-se no espaço.
As coisas têm eixos e rodam
com ruídos diferentes do seu nome.
E o Sol tramonta entre vestígios,
além dos montes e vales e o mar.
E o Sol tramonta sobre as nossas casas
e os montes e vales e o nosso mar.
Quando um verso marca o lugar das coisas
elas aí ficam para sempre. O Sol
que perpassa em cumes e em cristas
nasce nas arestas serranas do nascente
e vai até ao mar em sete versos.
Fiama Hasse Pais Brandão,"Cenas Vivas",Relógio d´Água
terça-feira, maio 22, 2007
E tudo era possível!
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Ruy Belo, in "Todos os Poemas"
segunda-feira, maio 21, 2007
Bacon

"Oedipus and the Sphinx" (afterIngres),1983
Francis Bacon
,+++Mus%C3%A9e+du+Louvre.jpg)
Dominique Ingres - "Oedipus and the Sphinx",c. 1808
Louvre
Pequenas coisas
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
Albano Martins, in "Escrito a Vermelho", 1999
domingo, maio 20, 2007
entrasse no mar. Um temporal de perguntas
enrola os teus cabelos. Lanças-te
contra as ondas de um sonho antigo,
e abres a porta da varanda
para te sentares à cadeira
do oriente, apanhando o vento
da tarde. "Não te levantes, digo,
e deixa que os teus olhos se libertem
de sombra, depois de uma noite
de amor, para me abrigarem
da luz estéril da madrugada." Mudas
de posição, como se me tivesses
ouvido; e o teu corpo enche-se
de palavras, como se fosses
a taça da estrofe.
Nuno Júdice
Roubado no A a Z
sábado, maio 19, 2007
Quem o disse vê com olhos de não entendimento
Quem disse que o poema deve ter um tema?
Quem o disse perde a poesia do poema
Pintura e poesia têm o mesmo fim:
Frescura límpida, arte para além da arte
Os pardais de Bain Lun piam no papel
As flores de Zhao Chang palpitam
Porém o que são ao lado destes rolos
Pensamentos-linhas, manchas-espíritos?
Quem teria pensado que um pontinho vermelho
Provocaria o desabrochar da primavera?
Su Dong Po -poeta chinês (1037-1101)
sexta-feira, maio 18, 2007
Há-de flutuar uma cidade
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade
Al Berto
quinta-feira, maio 17, 2007
As Gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.
Pedro Mexia, in "Duplo Império", 1999
quarta-feira, maio 16, 2007
O Melhor Pretexto
tão efémero tudo!
(Não é verdade, amiga,
olhinhos-cor-de-musgo?)
E ao mesmo tempo é forte,
forte de veleidade
de resistir à morte
quanto maior a idade.
Assim, aos trinta e sete,
fechados alguns ciclos,
a vida ainda pede
mais sentimento, vínculos.
Não tanto os que nos deram
a fúria de viver,
como esses descobertos
depois de se saber
que a vida não é outra
senão a que fazemos
(e a vida é uma só,
pois jamais voltaremos).
Partidários da vida,
melhor: do que está vivo,
digamos 'não' a tudo
que tenha outro sentido.
E que melhor pretexto
(quem o saiba que o diga!)
teremos p'ra viver
senão a própria vida.
Alexandre O´Neil, in "Poemas com Endereço", Morais Editora
terça-feira, maio 15, 2007
segunda-feira, maio 14, 2007
A Galopar
las grandes, las solas, desiertas llanuras,
Galopa, caballo cuatralbo, jinete del pueblo, al sol y a la luna.
¡ A galopar,
a galopar,
hasta enterrarlos en el mar !
A corazòn suenan, resuenan, resuenan
las tierras de España, en las herraduras.
Galopa, jinete del pueblo,
caballo de espuma
¡ A galopar,
a galopar,
hasta enterrarlos en el mar !
Nadie, nadie, nadie, que enfrente no hay nadie;
que es nadie la muerte si va en tu montura.
Galopa, caballo cuatralbo,
jinete del pueblo que la tierra es tuya.
¡ A galopar,
a galopar,
hasta enterrarlos en el mar !
Rafael Alberti
domingo, maio 13, 2007
Apolo Musageta
Banhando os horizontes de louvor.
Eras o espírito a falar em cada linha
Eras a madrugada em flor
Entre a brisa marinha.
Eras uma vela bebendo o vento dos espaços
Eras o gesto luminoso de dois braços
Abertos sem limite.
Eras a pureza e a força do mar
Eras o conhecimento pelo amor.
Sonho e presença
Duma vida florindo
Possuída e suspensa.
Eras a medida suprema, o cânon eterno
Erguido, puro, perfeito e harmonioso
No coração da vida e para além da vida
No coração dos ritmos secretos.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
sábado, maio 12, 2007
Rothko

Mark Rothko - "No. 13 (White, Red, on Yellow)", 1958
Metropolitan Museum

Mark Rothko - "Sacrifice",1946, Guggenheim-Venice
O Decifrador de Imagens
persegue um fantasma de vestígios
como Ulisses amarrado
ao querer do conhecer
A descoberta é invenção provisória:
as vozes não se vêem
o que se vê não se ouve
A imaginação
ergue-se do arrepio da sombra
guerrilha entre parênteses
ergue-se da constante chacina
procurando outra coisa
outra causa
o outro lado do ver
Ana Hatherly - in "O Pavão Negro", Assírio & Alvim
sexta-feira, maio 11, 2007
Separação do Corpo
sentidos, se tocados de leve, ecoando longamente
como memórias de outra vida
em frios desertos ou praias de lama.
O passado não está ainda preparado para nós,
para não falar do futuro; é certo que
temos um corpo, mas é um corpo inerte,
feito mais de coisas como esperança e desejo
do que de carne, sangue, cabelo,
e desabitado de línguas e de astros
e de noites escuras, e nenhuma beleza o tortura
mas a morte, a dor e a certeza de que
não está aqui nem tem para onde ir.
Lemos de mais e escrevemos de mais,
e afastámo-nos de mais – pois o preço era
muito alto para o que podíamos pagar –
da alegria das línguas. Ficaram estreitas
passagens entre frio e calor
e entre certo e errado
por onde entramos como num quarto de pensão
com um nome suposto; e quanto a
tragédia, e mesmo quanto a drama moral,
foi o melhor que conseguimos.
A beleza do corpo amado é
(agora sabemo-lo) lixo orgânico.
O mármore que pudemos foi o das casas de banho
e o dos balcões dos bancos,
e grandes gestos nem nos romances,
quanto mais nos versos! E do amor
melhor é nem falar porque as línguas
tornaram-se objecto de estudo médico
e nenhuma palavra é já suficientemente secreta.
Corpo, corpo, porque me abandonaste?
“Tomai, comei”, pois sim, mas quando
a química não chega para adormecermos,
a que divindades havemos de nos acolher
senão àquelas últimas do passado soterra
dassob tanta chuva ácida e tanta investigação histórica,
tanta psicologia e tanta antropologia?
A memória, sem o corpo, não é ascensão nem recomeço,
e, sem ela, o corpo é incapaz de nudez
e de amor. Agora podemos calar-nos
sem temer o silêncio nem a culpa
porque já não há tais palavras.
Manuel António Pina
quinta-feira, maio 10, 2007
quarta-feira, maio 09, 2007
Tu Sei Como Una Terra
que ninguém jamais disse-
Tu não atendes nenhuma
senão aquela palavra
que do fundo brotará
como um fruto entre os ramos.
Há um vento que te toca.
Coisas secas e re-mortas
te chocam e vão no vento.
Membros, palavras antigas.
Tu tremes pelo estio.
Cesare Pavese, in"Poesia do Sec.XX"
trad. de Jorge de Sena
terça-feira, maio 08, 2007
Anselm Kiefer em Bilbao

Kiefer, Anselm - The renowned orders of the night,1997
O alemão Anselm Kiefer no Guggenheim Bilbao, até 3 de Setembro.
segunda-feira, maio 07, 2007
só amamos aquilo que amamos em vão
Só amamos aquilo que amamos em vão.
Tenta outra sonda de rádio
quando dez tiverem falhado,
toma duzentos coelhos
quando cem tiverem morrido:
só isso é ciência.
Perguntas o segredo.
Tem só um nome:
de novo.
No fim
um cão traz nas mandíbulas
a sua imagem na água,
pessoas fixam a lua nova,
amo-te.
Como cariátides
os nossos braços erguidos
seguram o peso de granito do mundo
e derrotados
venceremos sempre.
Miroslav Holub-"Qual é a Minha ou a Tua Língua",
org.Jorge Sousa Braga,Assirio&Alvim
Amor
Dois mil cigarros
E uma centena de milhas
De parede a parede.
Uma eternidade e meia de vigílias
Mais brancas que a neve
Toneladas de palavras velhas
como pegadas
de um ornitorrinco na areia.
Uma centena de livros que ficaram por escrever.
Uma centena de pirâmides que ficaram por construir.
Lixo.
Pó.
Amargo
Como o princípio do mundo.
Acredita em mim quando o digo
Que foi belo.
Miroslav Holub-in"Qual é a Minha ou a Tua Língua",
org.Jorge Sousa Braga,Assirio&Alvim
Miroslav Holub, poeta e cientista nasceu na Checoslováquia em 1923. Várias vezes nomeado para Prémio Nobel da Literatura morreu em Praga em 1998.
Bons Ventos de Espanha

Tintoretto, 'The Origin of the Milky Way', about 1575
Até 13 de Maio "Jacopo Tintoretto (1518-1594)", no Museu do Prado, Madrid
domingo, maio 06, 2007
Mãe
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda nãoviajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue verdadeiro, encarnado!
Mãe!
Eu ainda não fiz viagens. E a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa.Depois venho sentar-me a teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens,
aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei,escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe!
Ata as tuas mãos às minhas e dá um
nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa.
Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exatamente para a nossa casa, como a mesa. Como a mesa.
Mãe!
Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
Almada Negreiros - "A Invenção do Dia Claro"
sábado, maio 05, 2007
A Marc Chagall

Asno ou vaca cavalo ou galo
até a pele de um violino
Homem cantor uma só ave
dançarinos ágil com sua mulher
Par revestido de têmpera na sua primaveraO ouro vegetal o chumbo celeste
cindidos pelas chamas roxas
da saúde do orvalho
o sangue irisa-se o coração tilinta
Um casal o reflexo primeiro
E num subterrâneo de neve
a vinha opulenta desenha
Um rosto com lábios de lua
que nunca dormiu à noite
Paul Éluard, "O duro desejo de durar"-trad. Gabriela Llansol
sexta-feira, maio 04, 2007
quinta-feira, maio 03, 2007

Goya - Los Fusilamientos del 3 de Mayo, 1814 - Prado
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem sequer seja isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
para que os liquidasse com suma piedade e sem efusão de sangue.
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto que mais importa -- essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
-- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga --
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Jorge de Sena